terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Falta Francisco

*Por Cristovam Buarque
Quem viveu as últimas décadas teve oportunidade de assistir milagres históricos. Fatos que surpreendem porque parecem ir contra a realidade política e mesmo assim acontecem. Em geral, as forças sociais empurram para a realização do milagre, mas quase sempre são forças morais de líderes políticos que acendem a chama que leva às mudanças.
Foi assim com o fim do socialismo no Leste Europeu. Um milagre surpreendente até para os mais atentos analistas e os sistemas de espionagem, que aconteceu porque havia forças sociais que empurravam neste sentido devido à ineficiência do sistema em vigor, mas que aconteceu naquele momento pela faísca de líderes como João Paulo II, Lech Walesa e Mikhail Gorbachev.
Nesta semana, assistimos um desses milagres com o inesperado reatamento das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos. Isso aconteceria um dia, mas nada indicava que seria agora. As forças sociais se moviam lentamente dentro dos EUA quanto em Cuba na direção deste reatamento. Nos EUA, porque não havia necessidade deste passo para melhorar sua situação econômica ou militar, e sua liderança política tira proveito do bloqueio para manter apoio interno de potentes forças conservadoras. Em Cuba, porque não há necessidade urgente de mudança. Depois de 50 anos, o país dispõe de um sistema de acomodamento aos problemas do bloqueio que até serve como desculpa para muitas das dificuldades enfrentadas pelo povo no seu dia a dia.
A cada dia se tornava mais incômodo para os EUA manter a perversidade do bloqueio e para Cuba sobreviver apesar do bloqueio, mas a situação poderia continuar por décadas, se não fossem forças morais levadas à corajosa decisão das lideranças de cada um destes países enfrentarem suas resistências internas e quebrarem o impasse.
Foi necessária a iniciativa do Papa Francisco, a ousadia do presidente Obama e as mudanças na liderança cubana para que o passo fosse dado. Talvez não tenha sido por acaso que o Papa é argentino, como João Paulo II era polonês. Tampouco não foi por acaso que o presidente dos EUA é negro, teve uma origem política lendo clássicos da literatura de esquerda, inclusive latino-americana, e militou em movimentos sociais contra o racismo dentro de seu país. Nem é por acaso que a nova liderança que surge em Cuba, apesar de liderada por um combatente desde a Sierra Maestra, já dispõe de jovens surgidos depois do fim do socialismo no Leste, das profundas mudanças na China e do sentimento da crise ecológica.
Até milagres ocorrem quando as forças sociais em movimento se aliam às vontades de líderes sintonizados com estas mudanças e com a ousadia de enfrentar as resistências políticas dentro de suas respectivas bases de apoio.
A realidade brasileira mostra um país tão rompido socialmente quanto EUA e Cuba eram diplomaticamente. As consequências são a violência, a ineficiência e a injustiça, mas as forças sociais nos empurram para quebrarmos esta tragédia histórica, a lógica nos mostra que o caminho para isso é uma educação de qualidade e igual para todos; nosso “reatamento” de relações seria entre classes sociais, colocando seus filhos em escolas com a mesma qualidade. Mas nossas lideranças não parecem motivadas moralmente para tomar as decisões para este novo “reatamento” social. Na mesma semana do milagre cubano e estadunidense, no Brasil nossos líderes preferiram justificar legalmente o destino de centenas de bilhões de reais no subsídio à venda de automóveis, em vez de alocar uns poucos bilhões para que todo professor possa receber o Piso Nacional Salarial.
A força moral ainda não supera as forças políticas e os interesses econômicos contrários ao grande entendimento nacional.
Quem sabe não vamos ver, ainda em nossas vidas, o milagre de uma liderança política brasileira carregada de força moral, que seja capaz de casar as forças sociais que empurram o Brasil para ser um país educado, desejoso e capaz de canalizar nossa energia na direção de uma economia eficiente e uma sociedade harmônica.
Talvez nos falte um Francisco.
*Cristovam Buarque é professor emérito da UnB e senador pelo PDT-DF.

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