O FUNDEB como política indutora da universalização das matrículas com qualidade e equidade.
As reformas neoliberais
da década de 1990 proporcionaram graves consequências para a formação
escolar do povo brasileiro, até hoje não superadas. A
desresponsabilização do Estado e a consequente abertura do "mercado da
educação" à iniciativa privada se deram por meio da fragmentação das
políticas públicas - com prioridade ao ensino fundamental -, deixando os
entes púbicos de prover as condições de atendimento com qualidade nas
escolas de educação infantil e especial, ensino médio, EJA e ensino
técnico-profissional, com agravantes para as populações do campo,
indígenas e quilombolas.
Ainda neste período, a
sociedade brasileira, que há décadas exigia outro patamar de
investimento na educação pública, passou a conviver com propostas de
centralização curricular e pedagógica e, ao mesmo tempo, com a
descentralização dos investimentos escolares. Essa agenda, por sua vez,
estimulou a transferência de matrículas no ensino fundamental (anos
iniciais) das redes estaduais para os municípios, sem a devida
contraprestação financeira. E isso gerou mais distorções no atendimento
da educação infantil, a qual não contava com recursos adicionais da
União, tampouco das esferas estaduais. Por outro lado, o Decreto
2.208/97 desautorizou a ampliação da rede federal de ensino
técnico-profissional, e os estados não assumiram na proporção devida
essa demanda escolar.
Em relação aos
trabalhadores da educação básica, o Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
(FUNDEF), um dos pilares da reforma neoliberal, além de ficar restrito a
um só segmento da categoria, proporcionou a quebra de isonomia na
carreira profissional - com prejuízos para quem atuava fora do ensino
fundamental - e condicionou a remuneração média do magistério a
aproximadamente dois salários mínimos (em junho de 2001, na metade da
vigência do FUNDEF, o salário mínimo no Brasil era de R$ 180,00,
equivalente a US$ 75,00; e um/a professor/a com formação de nível médio
(e em muitos casos com graduação plena) e com cerca de 15 anos na
profissão recebia, em média, sobretudo nas redes municipais, R$ 363,00
ou US$ 150,00 por 20 horas de trabalho semanais).
A eleição de um governo
de aliança democrático-popular reacendeu a esperança de um novo marco
para as políticas públicas, em especial na educação. A pauta dos
movimentos sociais de protagonizar o papel do Estado como indutor do processo
de desenvolvimento, com inclusão social, foi colocada em prática não
obstante as restrições impostas pelas políticas neoliberais, sob as
quais o país permanecia refém para manter a estabilidade democrática em
seu território e no continente.
A criação do FUNDEB -
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação, por meio da Emenda
Constitucional nº 53, traduz parte da reivindicação histórica da
categoria dos trabalhadores em educação, no sentido de viabilizar o
financiamento para todas as etapas e modalidades do nível básico e de
valorizar os profissionais que atuam nas escolas públicas do país.
Corroborando essa visão, o Parecer nº 9/2009, da Câmara de Educação
Básica do Conselho Nacional de Educação, que versa sobre as Diretrizes
para os Novos Planos de Carreira e de Remuneração para o Magistério dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, destaca que a EC nº
53/2006 constitui elemento paradigmático para a organização das
políticas públicas educacionais por parte da União e dos demais entes
federados. Ela marca o início da terceira fase de regulamentação das
premissas constitucionais para a educação, à luz de uma nova visão
política do Estado brasileiro, que tem pautado: i) a concepção sistêmica
da educação, na perspectiva do Sistema Nacional Articulado de Educação;
ii) a ampliação do financiamento público ao conjunto da educação
básica; e iii) a necessidade de se reconhecer e valorizar todos os
profissionais das redes públicas de ensino, como condição sine qua non
para a garantia do direito da população à educação pública de
qualidade...".
Após muita pressão
popular e de intensas negociações envolvendo os entes federados, o
movimento sindical na educação, representado pela CNTE, e as entidades
da sociedade civil, representadas pela Campanha Nacional pelo Direito à
Educação, a Lei nº 11.494/2007 foi aprovada no Congresso Nacional
prevendo, entre outras coisas:
- A inclusão de todas as matrículas da educação básica nos Fundos Estaduais, inclusive creches públicas e conveniadas;
- O repasse da União em percentual mínimo de 10% sobre o valor agregado dos Fundos Estaduais, a título de complementação aos entes que não atingirem a média per capita de investimento nacional por estudante - hoje, essa quantia alcança o patamar de R$ 10 bilhões frente os R$ 400 milhões do FUNDEF, podendo e devendo ser majorada para atingir a reivindicação social de Custo Aluno Qualidade;
- A ampliação representativa dos conselhos de acompanhamento e controle social, impondo limites à atuação dos gestores públicos nesses espaços de fiscalização, embora essa ainda seja uma tarefa que está longe de ser concluída; e
- O estabelecimento de piso salarial profissional para o magistério público, vinculado à formação profissional, ao vencimento inicial das carreiras e à jornada de trabalho com no mínimo 1/3 de hora-atividade (trabalho extraclasse). Em comparação com o exemplo acima, atualmente, o vencimento inicial para a carreira do/a professor/a com formação de nível médio, em todo país, que cumpre jornada de trabalho de no máximo 40 horas semanais, não pode ser inferior, segundo cálculos do MEC, a R$ 1.567,00 (US$ 783,00). Ou seja, o que à época do FUNDEF era pago no meio da carreira como remuneração deslocou-se, com ganho real de US$ 180,00, para o patamar inicial dos vencimentos. E mesmo estando longe de significar a valorização pretendida pela categoria, essa política continua despertando intensos questionamentos no Supremo Tribunal Federal, já acumulando dois pedidos de inconstitucionalidade da Lei 11.738. Por outro lado, permanece o desafio de regulamentar o art. 206, VIII da Constituição, que estende o piso salarial nacional para todos os profissionais da educação.
Embora tenhamos
consciência das limitações do FUNDEB, que é uma política de caráter
transitório, pois o financiamento consistente e perene da educação
pública depende de ampla Reforma Tributária que priorize o combate às
desigualdades regionais, não podemos abrir mão de uma política pública
que, além de promover maior equidade educacional, também resguarda a
capacidade de gestão dos entes estaduais e municipais para melhor
atender seus compromissos para com a escola pública e a valorização de
seus profissionais.
O desafio do Estado
brasileiro, nesse momento, consiste em criar condições que assegurem o
direito à educação básica pública de qualidade, nos termos da EC nº 59,
com equidade, laicidade, valorização profissional, financiamento
compatível com o Custo Aluno Qualidade e democracia nas escolas e nos
sistemas de ensino. Para tanto, faz-se necessário aprovar, com urgência,
o novo Plano Nacional de Educação na perspectiva de institucionalizar o
Sistema Nacional de Educação. E sem recursos financeiros provindos de
novas fontes de receitas do Estado, especialmente dos royalties do
petróleo, dificilmente será possível transpor as atuais barreiras que
impedem a melhoria da qualidade da educação no país.
Enquanto esse novo
paradigma educacional não se configura, o FUNDEB continuará sendo a
referência para o financiamento da escola pública básica, devendo, cada
vez mais, cumprir seus objetivos equalizadores das realidades
educacionais.
Entretanto, nos últimos
anos, especialmente após 2009, em função da crise econômica que continua
afetando a economia do país e do mundo, diversas políticas de isenções
fiscais lançadas sobretudo pela União vêm acarretando forte diminuição
nos impostos que compõem o FUNDEB. Não bastasse isso, as estimativas
anuais para o Fundo - de responsabilidade da Secretaria do Tesouro
Nacional (STN/Fazenda) - ao destoarem fortemente das receitas efetivas
(consolidadas), passaram a comprometer sobremaneira a execução das
políticas de investimento e custeio educacionais e, por consequência, a
fragilizar o próprio mecanismo de atualização do Piso do Magistério.
O ano de 2012 ilustrou
essa situação vivida por estados e municípios, na medida em que a queda
dos recursos do FUNDEB, à luz da previsão inicial da STN e sem que o
Governo encaminhasse ações que pudessem minimizar a gravidade do
problema, atingiu a credibilidade e a própria sustentabilidade do Fundo
Contábil.
A Portaria
Interministerial nº 1.809/2011, que inicialmente instituiu o custo aluno
mínimo para 2012 em R$ 2.096,68, acabou sendo revista somente em
28/12/2012, por meio da Portaria nº 1.495/12, que rebaixou o per capita
para R$ 1.867,15. E essa situação beirou o absurdo, pois comprometeu as
previsões orçamentárias, principalmente dos entes que recebem a
suplementação federal e que só a três dias do fim do ano foram
informados de que o recurso previamente prometido não seria mais
repassado para cobrir as despesas já executadas.
Outra situação fática e
preocupante diz respeito à falta de efetividade do encaminhamento da
Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica,
ratificada na Resolução MEC nº 7, de 26 de abril de 2012, que previa o
repasse dos recursos reservados ao pagamento do piso salarial do
magistério, no valor de R$ 1.048.930.436,48, de forma conjunta com os
90% restantes da complementação federal. Isso, porém, não ocorreu e
contribuiu para agravar ainda mais a situação nos 9 estados que recebem a
complementação federal.
Assim como em 2009,
também em 2012, a CNTE cobrou inúmeras vezes a correção das estimativas
de custo aluno e a adoção de medidas saneadoras, por parte da União,
para compensar as perdas no FUNDEB decorrentes das isenções fiscais que
afetaram o Fundo de Participação dos Estados e dos Municípios (FPE e
FPM), mas nada foi feito!
Não bastasse esse tipo de
inoperância, os órgãos fazendários, em especial a STN, voltou a
publicar informações impróprias acerca da arrecadação do FUNDEB, em
2012, por ocasião da Portaria Interministerial nº 1.495. A defasagem é
de quase R$ 4 bilhões, e foi usada como artifício para amenizar o
percentual de atualização do piso para este ano de 2013.
Para fins de melhor entendimento da situação, passemos aos números:
A Portaria MEC/Fazenda nº 1.809, de 28/12/11, estimou os seguintes valores per capita para o FUNDEB em 2012:
Receita própria de Estados e Municípios: R$ 104,89 bilhões Receita proveniente da complementação da União: R$ 9,44 bilhões*
Total R$ 114,33 bilhões
Em 28/12/2012, a Portaria nº 1.495 revogou a anterior supracita e estimou os seguintes valores para o FUNDEB em 2012:
Receita própria de Estados e Municípios: R$ 94,13 bilhões
Receita proveniente da complementação da União: R$ 8,47 bilhões*
Total: R$ 102,60 bilhões
* Saldo que exclui a parcela destinada à suplementação do piso salarial.
Ao considerarmos as duas
portarias interministeriais, verificamos uma redução de R$ 11,7 bilhões
entre os valores estimados para o ano de 2012. No entanto, pesquisa
feita pela CNTE nas contas dos FUNDEB, estado por estado, mostrou outra
realidade de receitas consolidadas até dezembro de 2012. Pelas
informações extraídas diretamente do Banco do Brasil, o valor total
depositado nas contas do FUNDEB dos estados e municípios, em 2012,
acrescida a complementação da União, foi de R$ 106,4 bilhões, portanto,
bem superior aos R$ 102,6 anunciados na Portaria de 28/12/12. Esse
valor, por consequência, significa um per capita maior que R$ 1.867,15, o
qual foi utilizado para reajustar o piso do magistério em 7,97% para
2013.
Hoje, o FUNDEB é
responsável por mais de 41 milhões de matrículas na educação básica,
sendo 17,9 milhões em redes estaduais e 23,1 milhões nas municipais. O
apoio aos municípios, que detêm maior número de matrículas, porém menos
receita fiscal, precisa ser garantido, mesmo em tempos de crise
econômica, caso contrário essa política de financiamento perderá seu
objetivo.
Para além das questões
suscitadas neste documento, enfatizamos outras providências que ensejam a
urgente atenção dos poderes públicos, quais sejam:
- Evitar manobras sobre os fatores de correção das verbas destinadas à educação básica e à valorização de seus profissionais;
- Prover a integral compensação de eventuais quedas de receitas decorrentes de isenções fiscais a fim de manter a previsão inicial do custo aluno;
- Atualizar trimestralmente o per capita do Fundeb, visando preservar o correto investimento em manutenção e desenvolvimento do ensino no ano de recolhimento dos tributos;
- Impedir o acúmulo de repasse da União de um ano para o outro, aos estados e municípios, uma vez que parte significativa dos entes federados não aplica esses recursos remanescentes de acordo com as regras do Fundo, sobretudo em relação aos 60% para pagamento dos profissionais do magistério;
- Rever a forma de complementação do Fundeb para contemplar todos os municípios que efetivamente se encontram abaixo do valor per capita nacional;
- Promover ajustes de contas nas matrículas municipalizadas;
- Condicionar a transferência de recursos voluntários da União, aos estados e municípios, ao cumprimento das legislações educacionais e ao combate à renúncia fiscal nos entes;8) Investir na capacitação dos conselheiros sociais;
- Estimular o controle social disponibilizando todas as informações necessárias, em consonância com os objetivos da Lei de Acesso à Informação.
O FUNDEB foi um passo
importante para a superação do modelo de financiamento imposto pelas
reformas neoliberais, especialmente para combater a lógica da
fragmentação que impedia a inclusão de milhares de crianças, jovens e
adultos na escola pública. Atualmente, as redes públicas detêm 86% das
matrículas na educação básica, e é preciso garantir mais investimentos
para melhorar a qualidade do ensino nessas instituições.
Este manifesto tem por
objetivo cobrar das autoridades públicas maior responsabilidade com uma
política que, embora ainda insuficiente, tem se mostrado importante para
combater a exclusão escolar e as diferenças regionais em prol da
qualidade na aprendizagem e da valorização dos profissionais da
educação.
Brasília, 22 de março de 2013
Conselho Nacional de Entidades da CNTE
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