sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Corsário

"Há um incêndio sob a chuva rala", Cazuza cantou em "Blues da piedade". Ou seja, para além das aparências há algo, no caso, mais intenso e inflamável. Se com Nietzsche começamos a observar que além do bem e do mal só há o bem e o mal, a poesia (a canção) desde sempre tenta criar situações em que o indivíduo possa ser confrontado com este além, este pós que "surpreende a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando é o óbvio", como Caetano canta em "Um índio".
A poesia presentifica o óbvio: ilumina as coisas simples da vida, dá-lhes sentidos e faz conexões insuspeitadas ao indivíduo imerso no mar do cotidiano. O poeta, eis um dos motivos porque ele deveria ser expulso da república, capta o desejo de sua gente e, com os elementos mais ordinários, intervem na ordem dada como certa, expondo-a sem máscaras.
Em "Corsário", de João Bosco e Aldir Blanc, o sujeito canta aquilo que está encoberto por certa frieza: seu coração tropical. Ele ferve, apesar do cofre gelado; nele a voz (do cantor) encontra o motor exato para seguir: "navegar é preciso" e estar no mar é condição humana demasiada humana.
A neve não resiste ao coração tropical: ao sangue (quente) do poeta, e que lhe faz escrever "mar" como saída e destino. O mar - tempo/espaço líquido das paixões - aparece como o reduto propício ao sujeito sozinho e disposto ao abandono-de-si; mas desejoso, em um cais imaginado, do reencontro consigo: a individuação, a distinção entre a polifonia marítima.
O corsário é o sujeito armado de solidão e calor. Ele parte com seu canto (suas palavras - mar - e sua melodia) o gelo (a automatização) cotidiano: confortável e cômoda e, por isso, sedutora e prisioneira. É preciso ir indo.
Pirata, o sujeito rouba da vida a própria vida motivadora de mobilidade. Ele canta o mar (com seu horizonte infinito) para se lançar ao mar arrebentando as amarras que lhe prendem os sentidos e lhe congela o juízo.
Guardada no disco Essa é a sua vida (1981), de João Bosco, "Corsário" é o canto do homem frio em início de despertamento para novas possibilidades de vida. Cansado de ser fiel às próprias certezas, ele entoa e plasma o prelúdio (mesmo em ritmo de tartaruga) do novo tempo: há um cheiro longínquo de primavera (roseirais) no ar. E cada palavra cantada sua é rosa germinando; é fenda no gelo. E em cada palavra (mensagem lançada ao mar) sua está o sujeito todo, inteiro, se dando de graça à graça (divina) do ouvinte.

***

Corsário
(Aldir Blanc, João Bosco)

Meu coração tropical
está coberto de neve, mas,
ferve em seu cofre gelado
e a voz vibra e a mão escreve: mar
Bendita a lâmina grave
que fere a parede e trás
as febres loucas e breves
que mancham o silêncio e o cais

Roseirais
Nova Granada de Espanha
Por você, eu, teu corsário preso
vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar,
me arrastar até o mar,
procurar o mar

Mesmo que eu mande em garrafas
mensagens por todo o mar,
meu coração tropical
partirá esse gelo e irá
com as garrafas de náufrago
e as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha
e as rosas partindo o ar
 

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